Platão - Em defesa do Rei Filósofo


A REPÚBLICA (PLATÃO)


[TRECHO DO LIVRO V]


Sócrates - Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos não forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num mesmo indivíduo, enquanto os muitos caracteres que atualmente perseguem um ou outro destes objetivos de modo exclusivo não forem impedidos de agir assim, não terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades, nem, conforme julgo, os do gênero humano, e jamais a cidade que nós descrevemos será edificada. Eis o que eu hesitava há muito em dizer, prevendo quanto estas palavras chocariam o senso comum. De fato, é difícil conceber que não haja felicidade
possível de outra maneira, para o Estado e para os cidadãos.


Glauco - Depois de semelhante discurso, deves esperar, Sócrates, ver muitas pessoas tirar, por assim dizer, as roupas e, nuas, apanhar a primeira arma que estiver à mão, investir contra ti com todas as suas forças. Se não repelires essas pessoas com as armas da razão e se não conseguires fugir-lhes, saberás à tua custa o que significa zombar.

(...)


[TRECHO DO LIVRO VI]


Adimanto - Nesse caso, como pretender que não haverá fim para os males que afligem as cidades enquanto estas não forem governadas por esses filósofos que, a bem da verdade, reconhecemos que lhes são inúteis?


Sócrates - Suscitas uma questão à qual só posso responder por uma imagem.


Adimanto - Mas não é costume teu expressar-te por imagens!


Sócrates - Troças de mim depois de me teres comprometido numa questão tão difícil de resolver. Agora ouve a minha comparação, para perceberes ainda melhor como estou ligado a este processo. O tratamento que os Estados dispensam aos homens mais sábios é tão duro que não há ninguém no mundo que sofra outro semelhante e que, para criar uma imagem, aquele que pretende defendê-los é obrigado a reunir os caracteres de múltiplos objetos, à maneira dos pintores que representam animais metade bodes e metade veados e outras misturas do mesmo tipo. Agora imagina que algo semelhante a isto se passa a bordo de um ou de vários navios. O comandante, em compleição e força física, sobrepuja toda a tripulação, mas é um pouco surdo, um pouco míope e possui, em termos de navegação, conhecimentos tão curtos como a sua vista. Os marinheiros disputam o leme entre si; cada um julga que tem direito a ele, apesar de não conhecer a arte e nem poder dizer com que mestre nem quando a aprendeu. Além disso, não a consideram uma arte passível de ser aprendida e, se alguém ousa dizer o contrário, estão prontos a fazê-lo em pedaços. Atormentam o comandante com os seus pedidos e se valem de todos os meios para que ele lhes confie o leme; e se, porventura, não conseguem convence-lo e outros o conseguem, matam estes ou os lançam ao mar. Em seguida, apoderam-se do comandante, quer adormecendo-o com mandrágora, quer embriagando-o, quer de qualquer outra forma; senhores do navio, apropriam-se então de tudo a que nele existe e, bebendo e festejando, navegam como podem navegar tais indivíduos; além disso, louvam e chamam de bom marinheiro, de ótimo piloto, de mestre na arte náutica, aquele que os ajuda a assumir o comando, usando de persuasão ou de violência em relação ao comandante, e reputam inútil quem quer que não os ajude. Por outro lado, no que concerne ao verdadeiro piloto, nem sequer suspeitam de que deve estudar o tempo, as estações do ano, o céu, os astros, os ventos, se quiser de fato tornar-se capaz de dirigir um navio. Quanto à maneira de comandar, com ou sem a aquiescência desta ou daquela facção da tripulação, não pensam que seja possível aprender isso, pelo estudo ou pela prática, e, ao mesmo tempo, a arte da pilotagem. Não acreditas que nos navios onde acontecem semelhantes cenas o verdadeiro piloto será tratado pelos marinheiros de indivíduo inútil, interessada apenas em observar as estrelas?


Adimanto - Sim.


Sócrates - Tu não necessitas, penso eu, ver esta comparação explicada para reconheceres a imagem do tratamento que é dispensado aos verdadeiros filósofos nas cidades: espero que compreendas a minha ideia.


Adimanto - Sem dúvida.


Sócrates - Apresenta então esta comparação aos que se admiram de que os filósofos não sejam honrados nas cidades e procura convencê-los de que seria mais surpreendente se o fossem.


Adimanto - Farei isso.


Sócrates - Acrescenta que não estavas enganado ao afirmar que os filósofos mais sábios são inúteis à maioria da sociedade, mas faz notar que essa inutilidade é devida aos que não empregam os sábios, e não aos próprios sábios. Com efeito, não é natural que o pilota peça aos
marinheiros que se deixem governar por ele nem que os sábios vão bater às portas dos ncas. O autor desta zombaria mentiu. A verdade é que, rica ou pobre, a doente precisa ir bater à porta do médico e que aquele que tem necessidade de um chefe precisa ir bater à parta do homem que é capaz de comandar: não compete ao líder, se realmente pode ser útil, pedir aos governados que se submetam à sua autoridade. Assim, comparando os políticos que governam atualmente aos marinheiros de que falávamos há pouco e os que são considerados por eles inúteis e tagarelas perdidos nas nuvens aos pilotos de verdade, não te enganarás.


Adimanto - Muita bem.


Sócrates - Conclui-se que é difícil uma profissão ser estimada por aqueles que perseguem fins completamente opostos.