Schopenhauer, Nietzsche e a ética dos valores

(do livro "Filosofia Moral - Manual introdutório" de Demetrio Neri)

 

            O terceiro importante filósofo alemão, não idealista, a que é preciso fazer referência é Arthur Schopenhauer (1788-1860). Muito crítico em relação a Kant e em geral ao idealismo, Schopenhauer é conhecido pela obra O mundo como vontade e representação (1819), em que se evidencia a influência da filosofia indiana. No centro dessa obra está a noção de vontade como força cósmica fundamental que governa o mundo. Trata-se de uma força cega e irracional que está na base da vida e é até vontade de viver: ela não tem um fim último ou um objetivo e, portanto, jamais encontrará alguma coisa com que se satisfazer. É uma contínua tensão que torna a vida do homem – que tem a ilusão de ser livre, mas é apenas instrumento da vontade cósmica – um contínuo oscilar entre a dor e o aborrecimento. Com esse pano de fundo, uma moral tradicionalmente entendida não tem sentido, pois a vontade não prescreve nada e não forma a base de nenhum dever. A moral é simplesmente um fazer, um realizar atos que, segundo Schopenhauer, se fundamentam num fato instintivo e fundamental: a compaixão ou piedade pelos outros. A esse tema Schopenhauer dedica um ensaio intitulado Com base na moral (1840), em que mostra que a piedade é o único princípio moral que pode ser encontrado em todas as religiões, em todos os tempos e em todos os povos, e funciona até naquelas situações, como guerras ou revoluções, em que os outros princípios e leis não funcionam mais.

            Friedrich Nietzsche (1844-1900) é um outro filósofo cuja reflexão ética escapa a uma classificação precisa. Sob certos aspectos, sua reflexão é uma forma de naturalismo, pois ele deduz da natureza do homem o seu quadro de valores: todavia, ele pensa que a natureza do homem se identifica na vontade de potência e seu quadro de valores acaba, assim, ficando radicalmente invertido em relação ao tradicional. Enquanto os valores tradicionais são os do “rebanho” (a submissão, a humildade, a igualdade, etc.), os novos valores são, ao contrário, uma espécie de hino à vida nas suas pulsões instintivas mais vitais: a alegria, a altivez, a saúde, o amor sexual, etc. As éticas tradicionais, segundo Nietzsche, nasceram de uma profunda deformação da imagem do homem, que ele atribui em primeiro lugar a Sócrates e depois a toda a tradição judaico-cristã, centrada na noção de “ressentimento” em relação aos fortes e poderosos. Ele lembra que o termo “bom”, que a tradição considera o termo ético fundamental, servia na Grécia homérica para designar o homem excelente, forte, poderoso; somente a vitoriosa “revolta dos escravos” pôde transformá-lo na chave de abóbada de uma moral que privilegia, porém, o comportamento gregário, renunciatório e ascético. Diante de dois mil e mais anos de história da decadência da humanidade, Nietzsche anuncia o espetáculo grandioso reservado aos próximos dois séculos da história europeia: o fim da moral. É um fim já anunciado em Assim falou Zaratustra (1883) com a “morte de Deus”, um conceito que foi objeto das interpretações mais diferentes e que, em Nietzsche, assume a função de símbolo do definitivo ocaso de uma civilização, marcada pelas falsidades metafísico-religiosas e “de tudo o que nela há de confortante, de sagrado,  de restabelecedor, toda esperança, toda fé numa oculta harmonia, em felicidades e justiças ainda por vir” (Para além do bem e do mal, 1886). O protagonista da nova época é o super-homem”, o qual será capaz de substituir o “niilismo passivo” da ética tradicional, que comportou o declínio do poder do espírito, pelo “niilismo ativo”, fruto da sua vontade de potência e sinal do crescente poder do espírito. Esses conceitos estavam no centro da obra na qual Nietzsche trabalhava quando morreu, em agosto de 1900. A irmã reuniu as anotações dele e as publicou (com o título Vontade de potência), de modo a fazer Nietzsche parecer como uma espécie de precursor do nazismo. É somente depois da Segunda Guerra Mundial que a sua obra começou a ser apreciada, sobretudo como consciência crítica da modernidade. É por essa via que Nietzsche influenciou de modo relevante o debate ético contemporâneo, muitas vezes como objetivo polêmico, mas às vezes também como ponto de partida para uma ética adequada ao que é chamado de “pós-modernismo”.

            Nos últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX, desenvolveu-se na ética uma corrente de pensamento chamada ética axiológica (ou dos valores), que tenta superar o queé definido como o “relativismo axiológico”, de Nietzsche. Na verdade, é provável que Nietzsche tivesse invertido essa acusação, pois ele considera relativistas os valores emersos no curso do desenvolvimento da civilização ocidental (justamente como relativos a), ao passo que seriam absolutos os valores que derivam da natureza “verdadeira” do homem, que ele identifica no vínculo vital com a terra.

 

Neri, Demetrio. Filosofia moral – manual introdutório. São Paulo: Edições Loyola, 2004.