Do livro: O princípio responsabilidade

 

VELHOS E NOVOS IMPERATIVOS

 

1. O imperativo categórico de Kant dizia: “Aja de tal modo que tu também possas querer que tua máxima se torne lei geral”. Aqui, o “que tu possas” invocado é aquele da razão e de sua concordância consigo mesma: a partir da suposição da existência de uma sociedade de atores humanos (seres racionais em ação), a ação deve existir de modo que possa ser concebida, sem contradição, como exercício geral da comunidade. Chama-se atenção aqui para o fato de que a reflexão básica da moral não é propriamente moral, mas lógica: o “poder” ou “não poder” querer expressa autocompatibilidade ou incompatibilidade, e não aprovação moral ou desaprovação. Mas não existe nenhuma contradição em si na ideia de que a humanidade cesse de existir, e dessa forma também nenhuma contradição em si na ideia de que a felicidade das gerações presentes e seguintes possa ser paga com a infelicidade ou mesmo com a não-existência de gerações pósteras – tampouco, afinal, como a ideia contrária, de que a existência e a felicidade das gerações futuras seja paga com a infelicidade e mesmo com a eliminação parcial da presente. O sacrifício do futuro em prol do presente não é logicamente mais refutável do que o sacrifício do presente a favor do futuro. A diferença está apenas em que, em um caso, a série segue adiante e, no outro, não. Mas que ela deva seguir adiante, independentemente da distribuição de felicidade e infelicidade, e até com o predomínio da infelicidade sobre a felicidade, e mesmo com o da imoralidade sobre a moralidade, tal não se pode deduzir da regra da coerência no interior da série, por maior ou menor que seja a sua extensão. Trata-se de um mandamento de um tipo inteiramente diferente, externo e prévio àquela série, e cujo fundamento último só pode ser metafísico.

2. Um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: “ Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”; ou, expresso negativamente: “ Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”; ou, simplesmente: “Não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”; ou, em um uso novamente positivo: “Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer”.

3. É fácil perceber que a infração desse tipo de imperativo não conduz a nenhuma contradição. Eu posso querer o bem presente ao preço do sacrifício do bem futuro. Eu posso querer, assim como o meu próprio fim, também o fim da humanidade. Sem cair em contradição, posso preferir, no meu caso pessoal, bem como no da humanidade, uma breve queima de fogos de artifício que permita a mais completa auto-realização, à monotonia de uma continuação interminável na mediocridade.

Mas o novo imperativo diz que podemos arriscar a nossa própria vida, mas não a da humanidade; que Aquiles tinha, sim, o direito de escolher para si uma vida breve, cheia de atos gloriosos, em vez de uma vida longa em uma segurança sem glórias (sob o pressuposto tácito de que haveria uma posteridade que saberia contar os seus feitos); mas que nós não temos o direito de escolher a não-existência de futuras gerações em função da existência da atual, ou mesmo de as colocar em risco. Não é fácil justificar teoricamente – e talvez, sem religião, seja mesmo impossível – por que não temos esse direito; por que, ao contrário, temos um dever diante daquele que ainda não é nada e que não precisa existir como tal e que, seja como for, na condição de não-existente, não reivindica existência. De início, o nosso imperativo se apresenta sem justificativa, como um axioma.

4. Além disso, é evidente que o nosso imperativo volta-se muito mais à política pública do que à conduta privada, não sendo esta última a dimensão causal na qual podemos aplicá-lo. O imperativo categórico de Kant era voltado para o indivíduo, e seu critério era momentâneo. Ele exortava cada um de nós a ponderar sobre o que aconteceria se a máxima de sua ação atual fosse transformada em um princípio de legislação geral: a coerência ou a incoerência de uma tal generalização hipotética transforma-se na prova da minha escolha privada. Mas em nenhuma parte dessa reflexão racional se admitia qualquer probabilidade de que minha escolha privada fosse de fato lei geral, ou que pudesse de alguma maneira contribuir para tal generalização. De fato, não estamos considerando em absoluto consequências reais. O princípio não é aquele da responsabilidade objetiva, e sim o da constituição subjetiva de minha autodeterminação. O novo imperativo clama por outra coerência: não a do ato consigo mesmo, mas a da dos seus efeitos finais para a continuidade da atividade humana no futuro. E a “universalização” que ele visualiza não é hipotética, isto é, a transferência meramente lógica do “eu” individual para um “todos” imaginário, sem conexão causal com ele (“se cada um fizesse assim”): ao contrário, as ações subordinadas ao novo imperativo, ou seja, as ações do todo coletivo, assumem a característica de universalidade na medida real de sua eficácia. Elas “totalizam” a si próprias na progressão de seu impulso, desembocando forçosamente na configuração universal do estado das coisas. Isso acresce ao cálculo moral o horizonte temporal que falta na operação lógica e instantânea do imperativo kantiano: se este último se estende sobre uma ordem sempre atual de compatibilidade abstrata, nosso imperativo se estende em direção a um previsível futuro concreto, que constitui a dimensão inacabada de nossa responsabilidade.

 

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução de Danilo Marcondes. Rio de Janeiro: Ed. da PUC Rio, 2006.