Problema 1 - O que isto, a Filosofia?

Pesquisando, a gente aprende a aprender!

Problema 1 – o que é isto, a FILOSOFIA?

Grupo 1 - A arte da parteira

Platão, Teeteto (trad. de A. Lobo Vilela), Lisboa: Seara Nova, 1947, pp. 25-30

Disponível em: https://webpages.fc.ul.pt/~ommartins/images/hfe/momentos/escola/documentos.htm

 

SÓCRATES - Pois bem, pobre inocente, nunca ouviste dizer que sou filho da Fenarete, parteira muito hábil e de grande nomeada?

TEETETO - Sim, já ouvi dizer.

SÓCRATES - E não ouviste dizer também que eu exerço a mesma profissão?

TEETETO - Não.

SÓCRATES - Pois fica sabendo que é verdade, mas não o digas a mais ninguém. Os outros ignoram, meu caro, que possuo esta arte e é por isso que lhe não fazem referência quando falam de mim. Dizem que sou um homem extravagante, e só tenho habilidade para confundir toda a gente, a propósito de tudo. Nunca ouviste dizê-lo?

TEETETO - Sim.

SÓCRATES - Queres saber porquê?

TEETETO - Sim, dize.

SÓCRATES - Lembra-te do que acontece com as parteiras, e compreenderás mais facilmente o que quero dizer. Como sabes, nenhuma delas se ocupa do parto de outras mulheres enquanto pode conceber e ter filhos, e só exercem essa profissão quando já não podem procriar.

TEETETO - É certo.

SÓCRATES - Diz-se que este costume provém de Artemisa, que foi encarregada de presidir aos partos sem nunca ter dado -à luz. Ela não quis que as mulheres estéreis fossem parteiras, porque a natureza humana é demasiado fraca para exercer uma arte de que não tem experiência nenhuma; e reservou essas funções às mulheres que já tinham passado a idade de procriar para honrar a semelhança que tinham com ela.

TEETETO - É provável.

SÓCRATES - Não é também provável, e necessário até, que as parteiras conheçam melhor que ninguém se uma mulher está grávida ou não?

TEETETO - Certamente.

SÓCRATES - Além disso, por meio de drogas e de sortilégios, sabem apressar o momento do parto e amortecer as dores, quando querem ; fazem dar à luz as que têm dificuldade, e provocam o aborto se julgam conveniente.

TEETETO - É exacto.

SÓCRATES - Entre as suas aptidões, nunca notaste que são boas casamenteiras, porque sabem que homem e que mulher se devem unir para ter filhos robustos ?

TEETETO –Não, aí está uma coisa que eu não sabia.

SÓCRATES - Pois podes ter a certeza de que se orgulham mais desta aptidão do que de saberem cortar o cordão umbilical. Realmente, pensa um pouco: julgas que a arte de cultivar e colher os frutos da terra é a mesma que faz conhecer em que terra se deve cultivar determinada planta ou semente, ou supões que é diferente?

TEETETO - Não são artes diferentes : é a mesma.

SÓCRATES - E em relação à mulher, meu caro, supões que a arte de semear e a de colher são diferentes ?

TEETETO - Não é provável.

SÓCRATES - Não, realmente. Mas como há uma forma desonesta e arbitrária de acasalar o homem e a mulher de que se encarregam certos medianeiros, as parteiras, ciosas da sua reputação, não querem interferir nos casamentos com receio das censuras que se fazem aos outros medianeiros. No entanto, só as parteiras dignas deste nome podem fazer uma boa distribuição dos casamentos.

TEETETO - Assim parece.

SÓCRATES - Tal é, pois, o oficio das parteiras, que é inferior ao meu. Efectivamente as mulheres não podem dar à luz umas vezes quimeras e outras vezes seres autênticos, o que não é fácil distinguir. Se isso acontecesse, o maior e o mais belo trabalho das parteiras seria distinguir o verdadeiro do falso. Não te parece?

TEETETO - Sim.

SÓCRATES - A minha arte de parteiro compreende todas as funções que as parteiras desempenham, com a diferença que se exerce sobre homens e não sobre mulheres, cuida das almas e não dos corpos. A principal vantagem da minha arte é permitir-me distinguir, com segurança, se o espírito de um rapaz dá à luz uma quimera e uma falsidade, ou um fruto real e verdadeiro. Por outro lado, tenho de comum com as parteiras o ser estéril em matéria de sabedoria; por isso tem fundamento a censura que me fazem muitas vezes de interrogar os outros sem nunca emitir opinião acerca de nenhuma coisa, porque nada sei. E procedo assim porque o deus me impõe o dever de ajudar os outros a dar à luz, mas não me permite parir. É por isso que não possuo sabedoria e não posso gabar-me de nenhuma descoberta que a minha alma tenha produzido. Em compensação, aqueles que convivem comigo, embora a princípio pareçam ignorantes, fazem maravilhosos progressos à medida que recebem a minha influência, se o deus assim lhes permite, não só na sua opinião, mas também na dos outros. É claro, como o dia, que não aprendem nada comigo e encontram em si mesmos as belas coisas que dão à luz; mas, se as conceberam, foi graças ao deus e a mim. Queres a prova disso? Muitos rapazes, desconhecendo o valor da minha assistência e atribuindo a si mesmos os seus progressos, abandonaram-me antes de tempo, quer por instigação alheia, quer de livre vontade. Longe de mim, sob a influência de maus mestres, abortaram todos os gérmenes que traziam em si; e àqueles que eu lhes fiz dar à luz, mal alimentados, deixaram-nos perecer, porque faziam mais caso de mentiras e de vãs aparências do que da verdade, e acabaram por parecer ignorantes a seus próprios olhos e aos dos outros. Arístides, filho de Lisímaco, foi um deles, e há muitos mais. Quando voltam e me pedem insistentemente para os receber no meu grupo, o meu espírito familiar proíbe-me que aceite alguns e permite-me que aceite outros; estes últimos tiram proveito, como da primeira vez. Aqueles que convivem comigo assemelham-se ainda num ponto às parturientes : sentem as dores do parto e experimentam, dia e noite, inquietações mais vivas que as das mulheres. Mas a minha arte é capaz de despertar essas dores e de as fazer cessar. Eis o que faço àqueles que convivem comigo. Alguns há, porém, Teeteto, cujas almas não me parecem prenhes; e, quando reconheço que não precisam de mim, intercedo por eles com todo o carinho, e, graças ao deus, descubro facilmente a quem devo confiá-los. É assim que tenho confiado muitos a Pródico e a outros homens sábios e divinos. Tenho-me alongado tanto nestas considerações, meu caro Teeteto, porque julgo, embora tu duvides, que a tua alma está prenhe e em trabalho de parto. Confia-te, pois, aos meus cuidados, lembrando-te de que sou filho duma parteira e hábil nesse ofício. Quando te fizer perguntas, procura responder o melhor que puderes; e se, depois de examinar a tua resposta, entender que é um fantasma sem realidade, e se o extirpar e deitar fora, não te aborreças comigo, como fazem as mulheres que são mães pela primeira vez. Tenho visto muitos, meu caro amigo, tão irritados contra mim que até eram capazes de me morder por lhes ter tirado qualquer opinião extravagante. Não compreendem que é por benevolência que o faço. Ignoram que nenhuma divindade quer mal aos homens e que eu também não procedo assim por má vontade, mas sim porque não me é permitido, de modo nenhum, aceitar o que é falso nem ocultar o que é verdadeiro. Voltemos, pois, ao princípio e procura dizer-me em que consiste a ciência. Nunca me digas que não és capaz, porque, se o deus quiser e te der coragem, consegui-lo-ás.

TEETETO - Na verdade, Sócrates, assim encorajado por ti, era uma vergonha não empregar todos os esforços para te dizer o que penso. Parece-me que todo aquele que sabe uma coisa sente aquilo que sabe e, segundo julgo neste momento, a, ciência não é mais do que a sensação.

 

Grupo 2 – Platão e o mito da caverna

ALEGORIA DA CAVERNA – PLATÃO (excerto da obra “República”)

Disponível em: https://platosendo.blogspot.com.br/2010/12/alegoria-da-caverna-platao-excerto-da.html

 

 

(…) Depois disto – prossegui eu – imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos "robertos" colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.

 

– Estou a ver – disse ele.

 

– Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objectos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados.

 

– Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – observou ele.

 

– Semelhantes a nós – continuei - Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projectadas pelo fogo na parede oposta da caverna?

 

– Como não – respondeu ele – se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?

 

– E os objectos transportados? Não se passa o mesmo com eles?

 

– Sem dúvida.

 

– Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam?

 

– É forçoso.

 

– E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?

 

– Por Zeus, que sim!

 

– De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objectos.

 

– É absolutamente forçoso – disse ele.

 

– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?

 

– Muito mais – afirmou.

 

– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para buscar refúgio junto dos objectos para os quais podia olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais nítidos do que os que lhe mostravam?

 

– Seria assim – disse ele.

 

– E se o arrancassem dali à força e o fizessem subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objectos?

 

– Não poderia, de facto, pelo menos de repente.

 

– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais facilmente para as sombras, depois disso, para as imagens dos homens e dos outros objectos, reflectidas na água, e, por último, para os próprios objectos. A partir de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol e o seu brilho de dia.

 

– Pois não!

 

– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar.

 

– Necessariamente.

 

– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que eles viam um arremedo.

 

– É evidente que depois chegaria a essas conclusões.

 

– E então? Quando ele se lembrasse da sua primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele se regozijaria com a mudança e deploraria os outros?

 

– Com certeza.

 

– E as honras e elogios, se alguns tinham então entre si, ou prémios para o que distinguisse com mais agudeza os objectos que passavam e se lembrasse melhor quais os que costumavam passar em primeiro lugar e quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero, e seria seu intenso desejo "servir junto de um homem pobre, como servo da gleba", e antes sofrer tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele modo?

 

– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela maneira.

 

– Imagina ainda o seguinte – prossegui eu - Se um homem nessas condições descesse de novo para o seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol?

 

– Com certeza.

 

– E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista, e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?

 

– Matariam, sem dúvida – confirmou ele.

 

– Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública.»

 

Grupo 3 – A filosofia surge do assombro

Metafísica, Livro I Capítulo I ARISTÓTELES

https://gabrielbistafa.blogspot.com.br/2014/02/todos-os-homens-tem-por-natureza-desejo.html

 

Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operar coisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista ao demais. A razão é que ela é, de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre. (1)

Por natureza, seguramente, os animais são dotados de sensação, mas, nuns, da sensação não se gera a memória, e noutros, gera-se. Por isso, estes são mais inteligentes e mais aptos para aprender do que os que são incapazes de recordar. Inteligentes, pois, mas sem possibilidade de aprender, são todos os que não podem captar os sons, como as abelhas, e qualquer outra espécie parecida de animais. Pelo contrário, têm faculdade de aprender todos os seres que, além da memória, são providos também deste sentido. (2)

Os outros [animais] vivem portanto de imagens e recordações, e de experiência pouco possuem. Mas a espécie humana [vive] também de arte e de raciocínios. (3)

É da memória que deriva aos homens a experiência: pois as recordações repetidas da mesma coisa produzem o efeito duma única experiência, e a experiência quase se parece com a ciência e a arte. Na realidade, porém, a ciência e a arte vêm aos homens por intermédio da experiência, porque a experiência, como afirma Polos, e bem, criou a arte, e a inexperiência, o acaso. (4)

E a arte aparece quando, de um complexo de noções experimentadas, se exprime um único juízo universal dos [casos] semelhantes. Com efeito, ter a noção de que a Cálias, atingido de tal doença, tal remédio deu alívio, e a Sócrates também, e, da mesma maneira, a outros tomados singularmente, é da experiência; mas julgar que tenha aliviado a todos os semelhantes, determinados segundo uma única espécie, atingidos de tal doença, como os fleumáticos, os biliosos ou os incomodados por febre ardente, isso é da arte. (5)

Ora, no que respeita à vida prática, a experiência em nada parece diferir da arte; vemos, até, os empíricos acertarem melhor do que os que possuem a noção, mas não a experiência. E isto porque a experiência é conhecimento dos singulares, e a arte, dos universais; e, por outro lado, porque as operações e as gerações todas dizem respeito ao singular. Não é o Homem, com efeito, a quem o médico cura, se não por acidente, mas Cálias ou Sócrates, ou a qualquer um outro assim designado, ao qual aconteceu também ser homem. (6)

Portanto, quem possua a noção sem a experiência, e conheça o universal ignorando o particular nele contido, enganar-se-á muitas vezes no tratamento, porque o objeto da cura é, de preferência, o singular. No entanto, nós julgamos que há mais saber e conhecimento na arte do que na experiência, e consideramos os homens de arte mais sábios que os empíricos, visto a sabedoria acompanhar em todos, de preferência, o saber. Isto porque uns conhecem a causa, e os outros não. Com efeito, os empíricos sabem o "quê", mas não o "porquê"; ao passo que os outros sabem o "porquê" e a causa. (7)

Por isso nós pensamos que os mestres-de-obras, em todas as coisas, são mais apreciáveis e sabem mais que os operários, pois conhecem as causas do que se faz, enquanto estes, à semelhança de certos seres inanimados, agem, mas sem saberem o que fazem, tal como o fogo [quando] queima. Os seres inanimados executam, portanto, cada uma das suas funções em virtude de uma certa natureza que lhes é própria, e os mestres pelo hábito. Não são, portanto, mais sábios os [mestres] por terem aptidão prática, mas pelo fato de possuírem a teoria e conhecerem as causas. (8)

Em geral, a possibilidade de ensinar é indício de saber; por isso nós consideramos mais ciência a arte do que a experiência, porque [os homems de arte] podem ensinar e os outros não. Além disto, não julgamos que qualquer das sensações constitua a ciência, embora elas constituam, sem dúvida, os conhecimentos mais seguros dos singulares. Mas não dizem o "porquê" de coisa alguma, por exemplo, por que o fogo é quente, mas só que é quente. (9)

É portanto verossímil que quem primeiro encontrou uma arte qualquer, fora das sensações comuns, excitasse a admiração dos homens, não somente em razão da utilidade da sua descoberta, mas por ser sábio e superior aos outros. E com o multiplicar-se das artes, umas em vista das necessidades, outras da satisfação, sempre continuamos a considerar os inventores destas últimas como mais sábios que os das outras, porque as suas ciências não se subordinam ao útil. (10)

De modo que, constituídas todas as [ciências] deste gênero, outras se descobriram que não visam nem ao prazer nem à necessidade, e primeiramente naquelas regiões onde [os homens] viviam no ócio. É assim que, em várias partes do Egito, se organizaram pela primeira vez as artes matemáticas, porque aí se consentiu que a casta sacerdotal vivesse no ócio. (11)

 

Já assinalamos na Ética a diferença que existe entre a arte, a ciência e as outras disciplinas do mesmo gênero. O motivo que nos leva agora a discorrer é este: que a chamada filosofia é por todos concebida como tendo por objeto as causas primeiras e os princípios; de maneira que, como acima se notou, o empírico parece ser mais sábio que o ente que unicamente possui uma sensação qualquer, o homem de arte mais do que os empíricos, o mestre-de-obras mais do que o operário, e as ciências teoréticas mais que as práticas. Que a filosofia seja a ciência de certas causas e de certos princípios é evidente. (12)

 

Grupo 4 – Nietzsche- Sócrates é um homem muito doente

Disponível em: https://athenateu.blogspot.com.br/2014/11/friedrich-nietzsche.html

 

“Toda filosofia oculta também uma filosofia; toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma máscara.” (NIETZSCHE, Além do bem e do mau, 2010, p.320)

“(...) reconheci Sócrates e Platão como sintomas de declínio, como instrumentos da dissolução grega”(NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 2010, p.27)

“Procuro compreender de que idiossincrasia [característica comportamental peculiar] se origina aquela equação socrática de razão = virtude = felicidade: a equação mais bizarra que existe e que tem contra si, em especial, todos os instintos dos helenos mais antigos.” (NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 2010, p.29)

“Sócrates (...) compreendeu que o seu caso, a idiossincrasia de seu caso, já não era mais uma exceção. A mesma espécie de degenerescência se preparava em silêncio por toda parte: a velha Atenas chegava ao fim. — E Sócrates compreendeu que todo mundo necessitava dele — de seu remédio, de sua cura, de seu truque pessoal de autoconservação... Por toda parte, os instintos estavam em anarquia; por toda parte, as pessoas estavam a um passo do excesso: o monstrum in animo era o perigo geral. ‘Os impulsos querem se transformar em tiranos; cabe inventar um antitirano que seja mais forte...’ (...) Como foi que Sócrates dominou a si mesmo? — No fundo, seu caso era apenas o caso extremo, apenas o que mais saltava aos olhos em meio àquilo que na época começou a se tornar uma calamidade geral: o fato de ninguém mais se dominar, de os instintos se voltarem uns contra os outros.”(NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 2010, p.31)

 

“O fanatismo com que toda reflexão grega se lança sobre a racionalidade revela uma situação de emergência: as pessoas estavam em perigo e só tinham uma alternativa: ou sucumbir, ou — ser absurdamente racionais... O moralismo dos filósofos gregos desde Platão é condicionado patologicamente; do mesmo modo, sua avaliação da dialética. Razão = virtude = felicidade significa apenas: é preciso imitar Sócrates e produzir uma luz diurnapermanente contra os desejos sombrios — a luz diurna da razão. É preciso ser sagaz, lúcido e claro a todo custo: qualquer concessão aos instintos, ao inconsciente, conduz para baixo...
Dei a entender de que modo Sócrates fascinava: ele parecia ser um médico, um salvador. Também é necessário apontar o erro que havia em sua crença na "racionalidade a todo custo"? — É um auto-engano da parte dos filósofos e moralistas pensar que basta combater a décadence para escapar dela. Isso está acima de suas forças: aquilo que escolhem como remédio, como salvação, é apenas outra expressão da décadence — eles modificam a sua manifestação sem que ela própria seja eliminada. Sócrates foi um mal-entendido; toda a moral do melhoramento, também a cristã, foi um mal-entendido... A mais ofuscante luz diurna, a racionalidade a todo custo, a vida lúcida, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em oposição aos instintos, tudo isso era apenas uma doença, mais uma doença — e de forma alguma um retorno à "virtude", à "saúde", à felicidade... Ser forçadoa combater os instintos — essa é a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende, felicidade é sinônimo de instinto.
(...) Sócrates queria morrer: não foi Atenas, mas ele que se deu a taça de veneno, ele que forçou Atenas a fazê-lo... ‘Sócrates não é médico’, disse baixinho para si mesmo, ‘o único médico aqui é a morte...’ O próprio Sócrates apenas padeceu de uma longa enfermidade...” (NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 2010, p.32-33)

“Os senhores me perguntam quais são as idiossin­crasias [característica comportamental particular] dos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio à própria ideia de devir, seu egipcianismo. Eles acreditamhonrar uma coisa ao despojá-la de seu aspecto histórico sub specie aeterni [Sob uma perspectiva eterna] — ao fazer dela uma múmia. Tudo o que os filósofos manusearam há milênios foram múmias conceituais; nenhuma realidade escapou viva de suas mãos. Esses idolatras de conceitos matam e empalham quando adoram — tudo corre perigo de morte quando adoram. A morte, a mudança, a idade, assim como a geração e o crescimento, são objeções para eles — refutações inclusive. O que é não se torna; o que se torna não é... Todos acreditam, até com desespero, no ser. Como, porém, não conseguem agarrá-lo, buscam as razões pelas quais são privados de possuí-lo. "Deve haver uma aparência, um embuste, que nos impede de perceber o ser: onde está o embusteiro?" — "Nós o apanhamos", gritam radiantes, "é a sensibilidade! Esses sentidos, que aliás também são tão imorais, nos enganam acerca do mundoverdadeiro. Moral: livrar-se do engano dos sentidos, do devir, da história, da mentira — a história não passa decrença nos sentidos, de crença na mentira. Moral: negar tudo que crê nos sentidos, o resto da humanidade: ela não passa de 'povo'. Ser filósofo, ser múmia, representar o monotonoteísmo [a fé no enfadonho] fazendo uso de uma mímica de coveiro! — E fora, sobretudo, com o corpo, essa deplorável idée fixe [ideia fixa] dos sentidos! Esse corpo acometido por todos os erros de lógica existentes, refutado, até impossível, ainda que seja atrevido o bastante para se portar como se fosse real!..."
(...) A "razão" é a causa de falsearmos o testemunho dos sentidos.” (NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 2010, p.34-35)

 

Grupo 5 – A filosofia entre a religião e a ciência (Bertrand Russell)

Disponível em: https://ateus.net/artigos/filosofia/a-filosofia-entre-a-religiao-e-a-ciencia/

 

Os conceitos da vida e do mundo que chamamos “filosóficos” são produto de dois fatores: um, constituído de fatores religiosos e éticos herdados; o outro, pela espécie de investigação que podemos denominar “científica”, empregando a palavra em seu sentido mais amplo. Os filósofos, individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções em que esses dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença de ambos que, em certo grau, caracteriza a filosofia.

“Filosofia” é uma palavra que tem sido empregada de várias maneiras, umas mais amplas, outras mais restritas. Pretendo empregá-la em seu sentido mais amplo, como procurarei explicar adiante. A filosofia, conforme entendo a palavra, é algo intermediário entre a teologia e a ciência. Como a teologia, consiste de especulações sobre assuntos a que o conhecimento exato não conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela mais à razão humana do que à autoridade, seja esta a da tradição ou a da revelação. Todo conhecimento definido — eu o afirmaria — pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que ultrapassa o conhecimento definido, pertence à teologia. Mas entre a teologia e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos ataques de ambos os campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia. Quase todas as questões do máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados. Acha-se o mundo dividido em espírito e matéria? E, supondo-se que assim seja, que é espírito e que é matéria? Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado de forças independentes? Possui o universo alguma unidade ou propósito? Está ele evoluindo rumo a alguma finalidade? Existem realmente leis da natureza, ou acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela ordem? É o homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno planeta sem importância? Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao mesmo tempo, ambas as coisas? Existe uma maneira de viver que seja nobre e uma outra que seja baixa, ou todas as maneiras de viver são simplesmente inúteis? Se há um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira realizá-lo? Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos, ou vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para a morte? Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último refinamento da loucura? Tais questões não encontram resposta no laboratório. As teologias têm pretendido dar respostas, todas elas demasiado concludentes, mas a sua própria segurança faz com que o espírito moderno as encare com suspeita. O estudo de tais questões, mesmo que não se resolva esses problemas, constitui o empenho da filosofia.

Mas por que, então, — poderíeis perguntar — perder tempo com problemas tão insolúveis? A isto, poder-se-ia responder como historiador ou como indivíduo que enfrenta o terror da solidão cósmica. A resposta do historiador, tanto quanto me é possível dá-la, aparecerá no decurso desta obra. Desde que o homem se tornou capaz de livre especulação, suas ações, em muitos aspectos importantes, têm dependido de teorias relativas ao mundo e à vida humana, relativas ao bem e ao mal. Isto é tão verdadeiro em nossos dias como em qualquer época anterior. Para compreender uma época ou uma nação, devemos compreender sua filosofia e, para que compreendamos sua filosofia, temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação causal recíproca. As circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar a sua filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para determinar tais circunstâncias. Essa ação mútua, através dos séculos, será o tema das páginas seguintes.

Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos o que podemos saber, mas o que podemos saber é muito pouco e, se esquecemos quanto nos é impossível saber, tornamo-nos insensíveis a muitas coisas sumamente importantes. A teologia, por outro lado, nos induz à crença dogmática de que temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por isso, gera uma espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza, na presença de grandes esperanças e receios, é dolorosa, mas temos de suportá-la, se quisermos viver sem o apoio de confortadores contos de fadas. Não devemos também esquecer as questões suscitadas pela filosofia, ou persuadir-nos de que encontramos, para as mesmas, respostas indubitáveis. Ensinar a viver sem essa segurança e sem que se fique, não obstante, paralisado pela hesitação, é talvez a coisa principal que a filosofia, em nossa época, pode proporcionar àqueles que a estudam.

A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia, surgiu, na Grécia, no século VI antes de Cristo. Depois de seguir o seu curso na antiguidade, foi de novo submersa pela teologia quando surgiu o Cristianismo e Roma se desmoronou. Seu segundo período importante, do século VI ao século XIV, foi dominado pela Igreja Católica, com exceção de alguns poucos e grandes rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250). Este período terminou com as perturbações que culminaram na Reforma. O terceiro período, desde o século XVII até hoje, é dominado, mais do que os períodos que o precederam, pela ciência. As crenças religiosas tradicionais mantêm sua importância, mas se sente a necessidade de que sejam justificadas, sendo modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal passo. Poucos filósofos deste período são ortodoxos do ponto de vista católico, e o Estado secular adquire mais importância em suas especulações do que a Igreja.