OS DOIS DEUSES (Edgar Morin)

 
Dissemos justamente que não se tratava tanto, hoje, de dominar a natureza como de dominar o domínio. Efetivamente, é o domínio do domínio da natureza que hoje causa problemas. Simultaneamente, esse domínio é, por um lado, incontrolado, louco, e pode conduzir-nos ao aniquilamento; por outro lado, é demasiado controlado pelos poderes dominantes, ou seja, os Estados-nações.
O problema do controle da atividade científica tornou-se crucial. Supõe um controle dos cidadãos sobre o Estado que os controla e uma recuperação do controle pelos cientistas, o que exige a tomada de consciência de que falei ao longo destas páginas.
A recuperação do controle intelectual das ciências pelos cientistas necessita da reforma do modo de pensar. É certo que a reforma do modo de pensar depende de outras reformas, e há uma interdependência geral dos problemas. Mas essa interdependência não devia fazer esquecer essa reforma-chave.
Todo cientista serve pelo menos a dois deuses que, ao longo da história da ciência e até hoje, lhe parecem absolutamente complementares. Hoje, devemos saber que eles não são somente complementares, mas também antagonistas. O primeiro deus é o da ética do conhecimento, que exige que tudo seja sacrificado à sede de conhecimento. O segundo deus é o da ética cívica e humana.
O limite da ética do conhecimento era invisível, a priori, e nós o transpusemo-lo sem saber; é a fronteira para lá da qual o conhecimento traz com ele a morte generalizada: hoje, a árvore do conhecimento científico corre o risco de cair sob o peso dos seus frutos, esmagando Adão, Eva e a infeliz serpente.
 
MORIN, Edgar. Para a ciência. In: Ciência com consciência. Lisboa: Europa-América, 1994. p. 29-30.