Arendt, Hannah - VITA ACTIVA E A CONDIÇÃO HUMANA

 

VITA ACTIVA E A CONDIÇÃO HUMANA

                Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: trabalho, obra e ação. São fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas sob as quais a vida foi dada ao homem na Terra.

                O trabalho é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento espontâneo, metabolismo e resultante declínio estão ligados às necessidades vitais produzidas e fornecidas ao processo vital pelo trabalho. A condição humana do trabalho é a própria vida.

                A obra é a atividade correspondente à não-naturalidade da existência humana, que não está engastada no sempre-recorrente ciclo vital da espécie e cuja mortalidade não é compensada por este último. A obra proporciona um mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras é abrigada cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas elas. A condição humana da obra é a mundanidade.

                A ação, única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou dá matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Embora todos os aspectos da condição humana tenham alguma relação com a política, essa pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas conditio per quam – de toda a vida política. Assim, a língua dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as expressões “viver” e “estar entre os homens” (inter homines esse), ou “morrer” e “deixar de estar entre os homens”(inter homines esse desinere). Mas, em sua forma mais elementar, a condição humana da ação está implícita até em Gênesis (“Macho e fêmea Ele os criou” Mt 19, 4), se entendermos que esse relato da criação do homem é distinto, em princípio, do outro segundo o qual Deus originalmente criou o Homem (adam) – “ele”, e não “eles”, de modo que a multidão dos seres humanos vem a ser o resultado da multiplicação. A ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência nas leis gerais do comportamento, se os homens fossem repetições interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, cuja natureza ou essência fosse a mesma para todos e tão previsível quanto a natureza ou essência de qualquer outra coisa. A pluralidade é a condição da ação humana porque somos todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá.

 

 

O TRABALHO DE NOSSO CORPO E A OBRA DE NOSSAS MÃOS [1] 

                A distinção que proponho entre trabalho e obra é inusitada. A evidência fenomênica a seu favor é demasiado impressionante para ser ignorada, e, não obstante, é historicamente um fato que, com exceção de umas poucas considerações esparsas, as quais por sinal nunca chegaram a ser desenvolvidas mesmo nas teorias de seus autores, quase nada existe para corroborá-la na tradição pré-moderna do pensamento político ou no vasto corpo das modernas teorias do trabalho. Contra essa escassez de provas históricas, porém, há um testemunho muito articulado e obstinado, isto é, o simples fato de que todas as línguas europeias, antigas e modernas, possuem duas palavras etimologicamente independentes para designar o que viemos considerar como a mesma atividade, e conservam ambas, a despeito de serem repetidamente usadas como sinônimas.

                Assim, a distinção de Locke entre as mãos que obram [working] e o corpo que trabalha é, de certa forma, reminiscente da antiga distinção grega entre o artífice, ao qual corresponde o Handwerker alemão, e aqueles que, como “escravos e animais domésticos, atendem com seus corpos às necessidades da vida” [2] (...).

                O motivo pelo qual essa distinção permaneceu ignorada nos tempos antigos parece-me bastante óbvio. O desprezo pela atividade do trabalho, originalmente oriundo de uma apaixonada luta pela libertação da necessidade e de uma impaciência não menos apaixonada com todo esforço que não deixasse vestígio, monumento ou grande obra digna de ser lembrada, generalizou-se na medida das crescentes exigências do tempo dos cidadãos pela vida na pólis e de sua insistência na abstenção de toda atividade que não fosse política, até estender-se a tudo quanto exigisse esforço (...).

                (...) A opinião de que o trabalho e a obra eram desdenhados na Antiguidade pelo fato de que somente escravos os exerciam é um preconceito dos historiadores modernos. Os antigos raciocinavam de modo contrário: achavam necessário ter escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupações que fornecessem o necessário para a manutenção da vida [3]. Era precisamente com base nisso que a instituição da escravidão era defendida e justificada. Trabalhar significava ser escravo da necessidade, e essa escravidão era inerente às condições da vida humana. Pelo fato de serem dominados pelas necessidades da vida, os homens só podiam conquistar a liberdade dominando outros que eles, à força, sujeitavam à necessidade. A degradação do escravo era um golpe do destino e um destino pior que a morte, pois implicava a metamorfose do homem em algo semelhante a um animal doméstico. Em vista disso, qualquer alteração na condição de escravo, como alforria ou uma circunstância política geral que elevasse certas ocupações a um nível de relevância pública, acarretava automaticamente uma mudança na “natureza” do escravo.

 

Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

 

NOTAS:

1-Locke, Segundo tratado sobre o governo civil, seção 26

2-Aristóteles, Política, 1254b25

3-Aristóteles inicia sua famosa discussão da escravidão (Política, 1253b25) com a afirmação de que, “sem o necessário, nem a vida nem a boa vida é possível”. Ser um senhor de escravos é a forma humana de assenhorear-se da necessidade e, portanto, não é contra a natureza; a própria vida o exige.