Marx - Manuscritos econômico-filosóficos. Primeiro Manuscrito. [sobre o trabalho]

XXIII

 

Examinemos agora mais de perto a objetivação, a produção do trabalhador, e nela o estranhamento, a perda do objeto, do seu produto.

O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível. Ela é a matéria na qual o seu trabalho se efetiva, na qual o trabalho é ativo, e a partir da qual e por meio da qual o trabalho produz.

Mas como a natureza oferece os meios de vida, no sentido de que o trabalho não pode viver sem objetos nos quais se exerça, assim também oferece, por outro lado, os meios de vida no sentido mais estrito, isto é, o meio de subsistência física do trabalhador mesmo.

Quanto mais, portanto, o trabalhador se apropria do mundo externo, da natureza sensível, por meio do seu trabalho, tanto mais ele se priva dos meios de vida segundo um duplo sentido: primeiro, que sempre mais o mundo exterior sensível deixa de ser um objeto pertencente ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho; segundo, que o mundo exterior sensível cessa, cada vez mais, de ser meio de vida no sentido imediato, meio para a subsistência física do trabalhador.

Segundo este duplo sentido, o trabalhador se torna, portanto, um servo do seu objeto. Primeiro, porque ele recebe um objeto do trabalho, isto é, recebe trabalho; e, segundo, porque recebe meios de subsistência. Portanto, para que possa existir, em primeiro lugar, como trabalhador e, em segundo, como sujeito físico. O auge dessa servidão é que somente como trabalhador ele pode se manter como sujeito físico e apenas como sujeito físico ele é trabalhador.

(O estranhamento do trabalhador em seu objeto se expressa, pelas leis nacional-econômicas, em que quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; que quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o trabalhador; que quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna; quanto mais rico de espírito o trabalho, mais pobre de espírito e servo da natureza se torna o trabalhador.)

A economia nacional oculta o estranhamento na essência do trabalho porque não considera a relação imediata entre o trabalhador (o trabalho) e a produção. Sem dúvida. O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas deformação para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas, mas lança uma parte dos trabalhadores de volta a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz espírito, mas produz imbecilidade, cretinismo para o trabalhador.

A relação imediata do trabalho com os seus produtos é a relação do trabalhador com os objetos de sua produção. A relação do abastado com os objetos da produção e com ela mesma é somente uma consequência desta primeira relação. E a confirma. Examinaremos mais tarde este outro aspecto. Se portanto perguntamos: qual é a relação essencial do trabalho, então perguntamos pela relação do trabalhador com a produção.

Até aqui examinamos o estranhamento, a exteriorização do trabalhador sob apenas um dos seus aspectos, qual seja, a sua relação com os produtos do seu trabalho. Mas o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também, e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se alheio ao produto da sua atividade se no ato mesmo da produção ele não se estranhasse a si mesmo? O produto é, sim, somente o resumo da atividade, da produção. Se, portanto, o produto do trabalho é a exteriorização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da exteriorização. No estranhamento do objeto do trabalho  resume-se somente o estranhamento, a exteriorização na atividade do trabalho mesmo.

 

Em que consiste, então, a exteriorização do trabalho?

Primeiro, que o trabalho é externo ao trabalhador, isto é, não pertence ao seu ser, que ele não se afirma, portanto, em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem, mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas mortifica sua phýsis e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si quando fora do trabalho e fora de si quando no trabalho. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu trabalho não é portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O trabalho não é, por isso, a satisfação de uma carência, mas somente um meio para satisfazer necessidades fora dele. Sua estranheza evidencia-se aqui de forma tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de autossacrifício, de mortificação. Finalmente, a externalidade do trabalho aparece para o trabalhador como se o trabalho não fosse seu próprio, mas de um outro, como se o trabalho não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. Assim como na religião a autoatividade da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo e sobre ele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador não é a sua autoatividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo.

Chega-se, por conseguinte, ao resultado de que o homem (o trabalhador) só se sente como ser livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc., e em suas funções humanas só se sente como animal. O animal se torna humano, e o humano, animal.

Comer, beber e procriar etc., são também, é verdade, funções genuinamente humanas. Porém na abstração que as separa da esfera restante da atividade, e faz delas finalidades últimas e exclusivas, são funções animais.

Examinamos o ato do estranhamento da atividade humana prática, o trabalho, sob dois aspectos. 1) A relação do trabalhador com o produto do trabalho como objeto estranho e poderoso sobre ele. Esta relação é ao mesmo tempo a relação com o mundo exterior sensível, com os objetos da natureza como um mundo alheio que se lhe defronta hostilmente. 2) A relação do trabalho com ato da produção no interior do trabalho. Esta relação é a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma atividade estranha não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força como impotência, a procriação como castração. A energia espiritual e física própria do trabalhador, a sua vida pessoal – pois o que é vida senão atividade – como uma atividade voltada contra ele mesmo, independente dele, não pertencente a ele. O estranhamento-de-si, tal qual acima o estranhamento da coisa.

 

Manuscritos econômico-filosóficos. Primeiro Manuscrito. p 81-83. São Paulo: Boitempo, 2010.

 

EXERCÍCIOS SOBRE A LEITURA

 

1) Marx afirma que “Quanto mais, portanto, o trabalhador se apropria do mundo externo, da natureza sensível, por meio do seu trabalho, tanto mais ele se priva dos meios de vida segundo um duplo sentido”. Como se dá essa privação dos meios de vida?

 

2) O que significa para Marx que o sujeito (trabalhador) torna-se um servo do objeto?

 

3) O que é a exteriorização do trabalho de que fala Marx?

 

4) O que significa a frase “A economia nacional oculta o estranhamento na essência do trabalho”?

1) Marx afirma que “Quanto mais, portanto, o trabalhador se apropria do mundo externo, da natureza sensível, por meio do seu trabalho, tanto mais ele se priva dos meios de vida segundo um duplo sentido”. Como se dá essa privação dos meios de vida?
 
2) O que significa para Marx que o sujeito (trabalhador) torna-se um servo do objeto?
 
3) O que é a exteriorização do trabalho de que fala Marx?
 
4) O que significa a frase “A economia nacional oculta o estranhamento na essência do trabalho”?