O que chamamos de mitologia grega?

O que chamamos de mitologia grega? Grosso modo e essencialmente, trata-se de um conjunto de narrativas que falam de deuses e heróis, ou seja, de dois tipos de personagens que as cidades antigas cultuavam. Nesse sentido, a mitologia está próxima da religião: ao lado dos rituais, de que os mitos as vezes tratam de forma muito direta, ora justificando-os no detalhe dos procedimentos práticos, ora assinalando os seus motivos e desenvolvendo seus significados, ao lado dos diversos símbolos práticos que, ao atribuírem aos deuses em uma forma figurada, encarnam sua presença no centro do mundo humano, a mitologia constitui, para o pensamento religioso dos gregos, um dos modos de expressão essenciais. Se a suprimirmos, talvez façamos desaparecer o aspecto mais apropriado para nos revelar o universo Divino do politeísmo, uma sociedade com um além múltiplo, complexo, ao mesmo tempo, rica e ordenada. Isto não significa, contudo, que podemos descobrir nos mitos, reunidos em forma de narrativas, a soma do que um grego devia saber e considerar verdadeiro sobre seus deuses, o seu credo. A religião grega não é uma religião do livro. Afora algumas correntes sectárias e marginais, como o orfismo, ela não conhece texto sagrado ou escrituras sagradas, nas quais a verdade da fé se encontraria definida e depositada uma vez por todas. Não há lugar, dentro dela, para qualquer dogmatismo. As crenças que os mitos veiculam, enquanto acarretam a adesão, não possuem qualquer caráter de força ou de obrigação; elas não constituem um corpo de doutrinas que fixam as raízes teóricas da piedade, assegurando aos fiéis, no plano intelectual, uma base de certeza indiscutível.

Os mitos são outra coisa: são relatos – aceitos, entendidos, sentidos como tais desde nossos mais antigos documentos. Comportam assim, em sua origem, uma dimensão de “fictício”, demonstrada pela evolução semântica do termo mythos, que acabou por designar em oposição ao que é da ordem do real, por um lado, e da demonstração argumentada por outro, o que é do domínio da ficção pura: a fábula. Esse aspecto de narração (e de narração livre o bastante para que, sobre o mesmo deus ou mesmo episódio de sua gesta[1], versões múltiplas possam coexistir e ser contraditórias sem escândalo) relaciona o mito grego ao que chamamos de religião, assim como o que é hoje para nós a literatura. [...]

Vernant, Jean-Pierre. Entre Mito e política. São Paulo: Edusp, 2001. P 229-232.



[1] Gesta: Narração de acontecimentos ou façanhas históricas. ["gesta", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/gesta.]