A instrumentalidade e o homo faber

 

Os utensílios e ferramentas do homo faber, do qual provém a experiência mais fundamental da instrumentalidade, determinam toda obra e toda fabricação. Aqui é realmente verdade que o fim justifica os meios; mais que isso, o fim produz e organiza os meios. O fim justifica a violência cometida contra a natureza para que se obtenha o material, tal como a madeira justifica matar a árvore e a mesa justifica destruir a madeira. É em atenção ao produto final que as ferramentas são projetadas e os utensílios são inventados, e o mesmo produto final organiza o próprio processo da obra, decide sobre os especialistas necessários, a quantidade de cooperação, o número de auxiliares, etc. Durante o processo da obra, tudo é julgado em termos de adequação e serventia em relação ao fim desejado, e nada mais.

Os mesmos critérios de meios e fim aplicam-se ao próprio produto. Embora este seja um fim em relação aos meios pelos quais foi produzido e seja o fim do processo de fabricação, nunca se converte, por assim dizer, em um fim em si mesmo, pelo menos não enquanto permanece um objeto de uso. A cadeira, que é o fim da carpintaria, só pode demonstrar sua utilidade ao tornar-se novamente um meio – seja como uma coisa cuja durabilidade permite seu uso como um meio para uma vida mais confortável, seja como um meio de troca. O problema do critério de utilidade inerente à própria atividade de fabricação é que a relação entre meios e fim na qual se fia é muito semelhante a uma cadeia na qual todo fim pode novamente servir como meio em algum outro contexto. Em outras palavras, em um mundo estritamente utilitário, todos os fins são constrangidos a serem de curta duração e a transformarem-se em meios para alcançar outros fins.

Essa perplexidade, intrínseca a todo utilitarismo sistemático, que é por excelência a filosofia do homo faber, pode ser diagnosticada teoricamente como uma incapacidade inata de compreender a diferença entre utilidade e significância, que expressamos linguisticamente ao distinguirmos entre “a fim de” e “em razão de”. (...)

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O utilitarismo antropocêntrico do homo faber encontrou sua mais alta expressão na fórmula de Kant: nenhum homem pode jamais tornar-se um meio para um fim, todo o ser humano é um fim em si mesmo. (...) é somente em Kant que a filosofia das primeiras fases da era moderna liberta-se inteiramente das trivialidades do bom senso, encontradas sempre onde o homo faber dita os padrões da sociedade. Naturalmente, o motivo disso é que Kant não pretendia formular ou conceitualizar os princípios do utilitarismo do seu tempo, mas, ao contrário, desejava antes de tudo pôr em seu devido lugar a categoria de meios-e-fim e evitar que fosse empregada no campo da ação política.

 

 

Arendt, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. P 190-193.